sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

"Preciso de uma porta fechada, uma caixa empoeirada, um sótão, um porão perdido"

Nem tudo pelo que me apaixono eu conheço por inteiro. Me dá uma ânsia "leonina" de devorar o que me prende logo no começo. Não consigo comer pelas beiradas, não sei esperar esfriar. Gosto de coisas assim, quentes, que deixam em mim um rastro físico de lucidez ou devaneio, alguma coisa que me chacoalhe, que queime a língua pra lembrar-me depois. Lembrar-me o quanto foi bom. É como o triplo do molho de pimenta que você acha que pode aguentar, such a sweet pain. Arde por dentro, dá vontade de desistir, de cuspir fora, mas é tão bom. Tão bom. E quando passa, a única coisa que fica é a vontade de querer mais.
Ultimamente eu tenho me apaixonado por tudo. Das joaninhas que ficam na minha janela a Caio Fernando Abreu. De Paolo Nutini aos contos de Mario de Andrade. Nem que eu tenha já usado de cabo a rabo, de trás pra frente, me apaixono tudo de novo.

Gosto que seja assim, que sobre um pouco de magia, de estória pra contar. Que seria de mim sem estórias pra contar? Preciso de uma porta fechada, uma caixa empoeirada, um sótão, um porão perdido, um túnel descoberto que leve a algum lugar. Uma vez quis comprar uma casa só porque havia um túnel recentemente descoberto por baixo da lareira, que era por onde o padre que morou no lugar se dirigia à igreja da vila. Quero túneis, escadas íngremes, vultos. Não, não me deixe só com o que é tangível, a rotina me mata. Quero o que não vejo, o que não toco, o que ainda está pra ser descoberto. Por isso tento ao máximo não devorar tudo de uma vez. Tento guardar uns filmes de Almodóvar para ver depois, uns livros de Quintana.
Tenho devorado Caio Fernando. É tão difícil me conter quando me apaixono desse jeito. Devoro, não consigo parar. Culpo a dopamina, será que ela também é produzida assim? Eu culpo sem dó, anda tão difícil de desgarrar quanto os outros vícios. Não consigo comer Caio Fernando pelas beiradas.
Espero por um livro. Qualquer um do Caio. Não gosto muito de ler virtualmente, gosto do cheiro do livro, da tinta de impressão, das folhas que amarelam com o tempo. Gosto de levá-lo comigo, como quem leva um segredo. Preciso do livro tangível, mas só o livro, porque o que há por dentro dele é o baú empoeirado.

“Tenho um amor fresco e com gosto de chuva e raios e urgências. Tenho um amor que me veio pronto, assim, água que caiu de repente, nuvem que não passa. Me escorrem desejos pelo rosto, pelo corpo.
Um amor susto. Um amor raio trovão fazendo barulho. Me bagunça. E chove em mim todos os dias.“
CAIO FERNANDO ABREU